NO VALOR:
A anistia da Lava-Jato
Maria Cristina Fernandes
A reta final do
impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff coincide com o avanço, nos
bastidores do Congresso, de uma anistia para uma parcela dos políticos que
tiveram seus nomes envolvidos na Operação Lava-Jato. A ideia transita na cúpula
dos Poderes Legislativo e Executivo. Já estava em pauta com a perspectiva de o
deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sem mandato, vir a fazer delação premiada e
ganhou força com o acordo, em fase final de negociação, entre o Ministério
Público e Marcelo Odebrecht.
Um grupo de
advogados com clientes na Lava-Jato começou a discutir a minuta de uma proposta
que tanto pode vir a entrar na negociação das dez medidas anticorrupção, que
tramitam no Congresso, quanto pode constar da reforma política que estará em
pauta depois das eleições municipais.
O centro da
proposta é a distinção entre caixa dois e propina. A legislação já os distingue
mas a partir de uma fronteira cinzenta que não impediu a Lava-Jato de juntar os
dois crimes no mesmo balaio.
Os grandes acordos
de delação premiada, tanto o de Marcelo Odebrecht quanto o das demais
empreiteiras envolvidas na operação, só evoluem a partir desta alquimia. Não é
difícil obter uma confissão de caixa dois, crime eleitoral de baixo potencial
punitivo. Mais difícil é arrancar dos empreiteiros a relação de atos prometidos
a partir de doação ilegal. É isso que constitui corrupção.
A anistia que se
começa a discutir no Legislativo avinagra o principal conteúdo das delações e
deve enfrentar forte reação no Ministério Público. Um de seus integrantes acaba
de anunciar, na Câmara que a Lava-Jato cumpriu apenas um quinto de suas
tarefas.
A inclusão da
anistia no debate das medidas anticorrupção seria a senha da negociação do
pacote. A despeito da grande reverência com a qual o juiz Sergio Moro foi
tratado, na semana passada, ao defender as medidas em audiência da comissão
especial, o pacote que, entre outras medidas, agrava a punição do caixa dois,
traz imenso desconforto aos parlamentares.
Os artigos que
tratam do alongamento dos prazos da prescrição penal e aqueles que limitam os
recursos à disposição dos réus são o limite do que o Congresso pode vir a
aceitar das medidas do Ministério Público. Em troca, a proposta ganharia o
jabuti da anistia.
Dado o poder de
mobilização do Ministério Público, que colheu 2 milhões de assinaturas em apoio
ao projeto, prevê-se reação estratosférica. Com a entrada em pauta, em
novembro, da reforma política seria aberta uma janela à tramitação da proposta.
Um de seus maiores
defensores, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), nega que a ideia já
esteja formatada, mas reconhece discussões no sentido de separar crime
eleitoral de propina. Maia trabalha para que, depois das eleições, quando prevê
um grande desarranjo decorrente da proibição das doações empresariais, o
Congresso aprove o fim das coligações, para enxugar o sistema partidário, e
institua o modelo de lista fechada com o qual prevê campanhas mais baratas.
O discurso a ser
adotado pelos parlamentares como vacina no acirrado debate público por vir é o
de que a história do país se constrói num pomar de anistias. Foi neste terreno
que brotou a Nova República. É por meio de sucessivos Refis que muitas empresas
permanecem em funcionamento. O acordo em negociação com os Estados também
prevê, em larga medida, um perdão de seus crimes de responsabilidade fiscal. O
capital refugiado também receberá as bênçãos de uma anistia em sua repatriação.
E, por fim, muitos contribuintes não conseguiriam se regularizar sem anistias
periódicas de IPTU promovidas pelas prefeituras.
Não parece haver
dúvida de que o Judiciário, frente à contra-delação, saia à frente no quesito
apoio popular. Mas o Congresso tem um calendário eleitoral a seu favor.
Espera-se desta disputa municipal sem dinheiro empresarial uma inflação de
eleitos com curral cativo (comunicadores e igrejeiros) ou conta bancária
recheada (empresários).
A iniciativa
parlamentar buscaria legitimidade na deterioração da representação política a
partir da tentativa de apartar a política do seu leite materno. A substituição
de Fernando Haddad por Celso Russomano na maior cidade do país seria o
principal símbolo da mudança para pior da política sob o signo da Lava-Jato.
A narrativa parte
do pressuposto de que só há dois tipos de políticos, os que recebem por fora
para se enriquecer e aqueles que o fazem para se eleger. Condenar Eduardo Cunha
e José Serra ao mesmo vaticínio seria decretar a morte da política e entregar o
país para o Ministério Público governar. Passado o impeachment, a cassação do
ex-presidente da Câmara marcaria o fim da transição para a era dos redimidos.
Entre os poucos
que, no Congresso, se dispõem a falar sobre o tema, há expectativa de que um
meio empresarial com ícones como Luiz Carlos Trabuco e Joseph Safra na linha de
tiro, veja com simpatia a reação legislativa. Este aval é a maior aposta
parlamentar para o rompimento da aliança indissolúvel entre imprensa e
Ministério Público.
O capítulo mais
delicado é o envolvimento do Palácio do Planalto. Se Michel Temer aparecer como
avalista, o vaticínio dos grampeados do ex-presidente da Transpetro, Sérgio
Machado, cai como uma espada sobre sua cabeça. O impeachment, finalmente
consolidado, teria o objetivo de riscar no chão os limites da Lava-Jato.
Quando esta
proposta vier a ser formatada, Temer estará desprovido dos biombos com os quais
governou até aqui. Sem a sombra de Dilma Rousseff, será mais diretamente
cobrado por resultados, seja por quem quer sangue, seja por aqueles que pedem
atadura. Não se descarte, ainda, a possibilidade de o Ministério Público, em
reação, acelerar o capítulo Jaburu de suas investigações. O presidente interino
não precisa consultar a Constituição para saber o que uma gestão sem
resultados, somada a revolta popular contra um abafa sob patrocínio estatal,
produziria sobre seu mandato.
A afinação entre
Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), mais próximo
do que nunca do Palácio do Planalto, dispensa um maior envolvimento de Temer
nas tratativas. Nenhum aliado da anistia, no entanto, é mais poderoso do que a
decadência de uma esquerda que, de porta-voz da decência, tornou-se potencial
beneficiária do acordo.
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