Tenho certeza de que muita gente, talvez a maioria, vai discordar do que começo a escrever aqui. Entre jonalistas, certamente sou ínfima minoria. Não faz mal. É o que penso agora, é o que pensava seis anos atrás, quando um grande amigo foi assassinado por ter sido encarregado de cumprir uma pauta inadequada para alguém do perfil e da idade dele.
Naquela ocasião, mandaram Tim Lopes com microcâmera a um baile funk, numa favela dominada por traficantes que ele já havia denunciado em reportagem anterior, pela qual ganhou um prêmio e apareceu para receber, sendo filmado e tendo sua imagem exibida nos telejornais da Globo.
Perdi alguns bons amigos por ter tomado esta posição. Algumas antigas amizades ficaram estremecidas, embora não tenha individualizado minha crítica. Lamento por issso até hoje, quase tanto quanto lamento ter perdido o também amigo Tim Lopes. Este não está vivo para reclamar do que escrevi.
Quando um episódio tenebroso como o assassinato de Tim Lopes acontece, tem gente que costuma dizer: a morte dele não será em vão e servirá de lição para nós. Foi em vão. Não aprendemos nada com a morte do meu amigo. Inventamos um guarda-chuva chamado "jornalismo investigativo", quase sempre algo parecido com ação policial travestida de jornalismo. Continuamos submetendo jornalistas a riscos desnecessários. Continuamos levando colegas de trabalho a passar por situações perigosas. Continuamos, no minimo, nos omitindo e permitindo que eles se exponham, quando são nossos subordinados.
O jornal O Dia fez isto com dois jornalistas e um motorista.
Das duas, uma: ou enviou uma repórter e um fotógrafo para viver numa favela dominada por milicianos, ou permitiu que eles fizessem isto.
A repórter, o fotógrafo e o motorista que o jornal designou para eles foram barbaramente torturados pelos milicianos, provavelmente policiais militares disfarçados com toucas ninja. Foram espancados durante sete horas e meia. Levaram choques, foram asifixiados, tomaram socos e pontapés, foram submetidos a roleta-russa...
Passaram por tudo isto porque acabaram identificados pelos milicianos. Foram identificados pelo milicianos porque eram pessoas estranhas à favela do Batan, onde passaram a viver de repente. Podem ter sido apontados aos seus algozes por moradores que apóiam a milicia, porque a preferem ao tráfico. Sim, há muita gente nas favelas que apóia a presença das milícias, assim como há gente em outras favelas que não se opõe ao tráfico. Ou o jornal O Dia imaginava que existem opiniões unânimes em favelas?
O sindicato dos jornalistas, procurado pelo jornal para opinar sobre o assunto, foi pusilânime. Em vez de incluir, entre suas declarações óbvias contra a violência das milicias, uma restrição, ainda que em tese, aos jornais que expõem jornalistas a sitações de perigo, preferiu a omissão e uma frase no mínimo estúpida:
"É um atentado à liberdade de informação".
É mesmo, sindicato? Como nossos líderes chegaram a esta brilhante conclusão? É claro, companheiros sindicalistas, que todos nós sonhamos com o dia em que traficantes, milicianos, criminosos em geral, especialmente os que costumam usar de grande violência contra suas vítimas, deixarão em paz pelo menos a nós, jornalistas, para que façamos nosso trabalho de denúncia contra eles com plena liberdade de informação. Ora, vão plantar batatas com frase tão banal, tão sem sentido quando dois colegas e um motorista passaram pelo inferno numa favela para a qual não deveriam ter sido enviados.
Quanto ao Dia, ficará por isso mesmo. O jornal, por certo, fará juz a irrestrita solidariedade. Não se envergonhará de ganhar dinheiro com o aumento da venda deste domingo à custa da história sofrida dos seus profissionais. Não assumirá um pingo de responsabilidade pela decisão de mandar seus jornalistas a um território dominado por fascínoras.
Não duvidem. Pode acabar sendo premiado por isto.
Um comentário:
Lembro do texto que você fez sobre o caso do Tim, é exatamente a mesma coisa...
Não sei se a família dele agiu na Justiça contra a Globo, ou se contentaram-se com homenagens e "compensações" do canal.
A ABI e o sindicato devem ter agido da mesma forma na ocasião, condenando apenas o "atentado contra a liberdade de informação", né?
Pois desta vez, eis que os jornalistas sobrevivem.
E se forem "compensados", vão deixar por isso mesmo? Mesmo que admitam imprudência, os funcionários -que tenham agido sem o conhecimento do canal- são vítimas da maior irresponsabilidade, do jornal. Até porque não existe isso de agir sem o conhecimento do canal, ou não deveria.
O sindicato deveria morrer de medo de consagrar seu obsoletismo, na eventualidade de alguma alma iluminada do MP resolver interpelar o jornal.
"Os procuradores e promotores podem tanto defender os cidadãos contra eventuais abusos e omissões do Poder Público quanto defender o patrimônio público contra ataques de particulares de má-fé", é o que diz o Ministério Publico Federal. Me parece que quando um jornal faz vista grossa sobre o perigo de morte de seus funcionários, está agindo de má fé, e deve ser indagado.
Memso que os repórteres, vítimas dos patrões, dispensem retaliações contra os verdadeiros irresponsáveis (que como você diz acabam premiados), o assunto tratado aqui é uma óbvia irresponsabilidade e eventual má fé do veículo em questão. Isso deveria ser apurado. Já que o sindicato e representantes da "entidade Imprensa" são fantasmas, deve ter alguma Ordem sensata para tratar do assunto.
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