terça-feira, 30 de setembro de 2008

Senhora desembargadora, páre agora!

Causa apreensão o artigo da desembargadora Cristina Tereza Gaulia, do Tribunal de Justiça do Rio, publicado hoje no Globo. Ela chega a propor que o judiciário não se submeta tão rigidamente ao cumprimento das leis. Quer os juízes ao lado do povo e defende, por meio de expressão abominável, o "empoderamento da cidadania".

A primeira reação seria responder que "empoderamento da cidadania" é o cacete e que, ainda que pareça secundário, o uso deste tipo de linguagem de diretório acadêmico é sinal de esquerdismo infantil. Falta de cultura, portanto. Mas podemos deixar isso de lado e discutir o mais importante.

Eis como a desembargadora começa o seu artigo:

"Diariamente o Judiciário e seus integrantes são criticados. É pois fundamental que a magistratura saia do conforto existencial para pensar criticamente a sua postura institucional e o serviço que presta ao público (já que de servidores públicos se trata)."

Calma, meritíssima. Num regime democrático, tudo e todos podem ser criticados. Nem por isso, por ser criticada, a gente abre mão de convicções e princípios ou se apressa a dar explicações. Muito menos um dos três poderes da República. Não é, "pois, fundamental" que a magistratura saia do seu "conforto existencial" para se derramar em penitências à sociedade que a critica. Que tal verificar se a crítica é justa ou se representa uma verdadeira tendência geral, a ser acolhida e tornada nova norma ou jurisprudência? Não seria este blogueiro leigo que deveria dizer a uma desembargadora que, no exercício do direito e na busca da Justiça, sempre haverá um lado vencedor e um lado perdedor, e que o perdedor nem sempre se conforma com a sentença que lhe foi atribuída.

O terceiro parágrafo do artigo da desembargadora é mais preocupante porque denuncia a vontade de politizar a Justiça e o direito. Propõe responder pressão ideológica com reação igualmente ideológica. Na luta ideológica, a verdade nem sempre prevalece e a Justiça raramente se impõe.

"Formados dentro de um dogmatismo (supostamente) apolítico, recusam-se os magistrados ao debate político dos conflitos judiciais. A visão meramente judicializada, no entanto, amesquinha a Justiça. Já dizia Brecht que o pior analfabeto e o analfabeto político."

Brecht fez apenas uma frase de efeito, como o são 90 por cento das frases que a gente vive citando a nosso favor. E era um analfabeto jurídico. No Brasil, os magistrados se recusam ao debate político dos conflitos judiciais muito menos do que deviam. Conflito judicial é assunto para os autos, para as testemunhas, para os jurados. Não deve mesmo ser politizado, ainda que ninguém possa impedir, o que torna a proposta da desembargadora fútil, que cada juiz emita uma sentença baseado não apenas nas leis e na jurisprudência mas em suas convicções pessoais - que em parte certamente serão políticas.

Mas cada vez fica mais assustador. Vejam:

"Ninguém questiona que o juiz deve respeitar a lei, mas dela não pode se tornar refém".

Não! Não! Por favor, sejamos todos, juízes e cidadãos, de uma vez por todas, reféns das leis. É disso que o Brasil precisa e precisa cada vez mais. Eu não quero viver num país em que podemos ser reféns de ideologias, mas liberados de respeitar aos leis ao pé da letra.

Agora, a desembargadora Cristina Tereza Gaulia chega ao ponto que mais se podia temer: a relatividade das leis e a abolição da igualdade de todos perante as regras da sociedade.

[O que se quer é ] "um juiz sensível à necessidade de um background cultural suficientemente denso que lhe permita uma visão realista das vidas, policromáticas e esgarçadas pela ausência do estado, dos membros da sociedade que integra".

Eis aí, com linguagem indireta e um tanto confusa, a defesa da tese de que as leis não devem ser iguais para todos. O juiz precisa decidir, ideologicamente, quem deve ser tratado com rigor e quem deve ser protegido das leis; quem deve ser punido porque é privilegiado e quem deve ser absolvido graças ao atenuante da ausência do estado. Está errado. Com ou sem estado, lei é lei. No Leblon, na periferia, no asfalto, na favela. Seja onde for. Sem relativismos.

Mais adiante, a desembargadora defende que os juizes se aproximem da população, "de suas necessidades e lutas".

Senhora juiza, páre agora! Não se aproxime de ninguém. Julgue com isenção. Respeite os autos. Aplique as leis. Faça justiça. É só o que podemos esperar do judiciário. E, convenhamos, não é pouco.

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