segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Querem destruir minha infância

É verdade, crianças: ao passar pela quinta década de vida a nossa memória ganha precisão apenas para os fatos mais antigos. Nos surpreendemos quando a mulher nos joga na cara frases infelizes que juramos não ter pronunciado naquela briga ridícula de três meses atrás, mas lembramos com minúcias de um passeio com os pais ocorrido há mais de 40 anos.

Há exatos 46 anos, meu pai decidiu que devia me levar todo domingo ao estádio dos Eucaliptos, no Menino Deus, para assistir aos jogos do Inter. Não o primeiro, na esquina da Azenha com a José de Alencar, mas o segundo, ali perto. Ele queria fazer do primogênito um colorado, como ele.

Eu gostava e não gostava dos passeios com o meu pai que envolviam futebol. O velho era muito brigão. Virava e mexia e ele se metia em alguma confusão. Quando jogava como lateral direito no campo do São José, no Passo da Areia, bairro onde morávamos, não havia jogo que não acabasse em sururu. Um dia, voltando para casa depois de uma briga, o velho teorizou:

- Sempre que a situação começar a ficar fora de controle, bata logo no primeiro que você enxergar por perto. Daí em diante, vira pancadaria e tu consegues sair ileso – ensinou, cheio de arranhões e com um olho roxo que exigiu algumas horas de compressa com um bife suculento.

Nos Eucaliptos, um alívio, não havia brigas. Só lições sobre tática e regras de futebol, e histórias lendárias e inacreditáveis sobre os feitos dos jogadores do Inter. O colorado era imbatível, na época. Talvez seja exatamente por isso, e por influência do meu padrinho de batismo, o tio Zezinho, gremista doente, que eu passei a me interessar pelo time que perdia sempre. Além do mais, o Grêmio era azul, minha cor predileta.

O velho não desistiu facilmente. Ainda me levou ao torneio que inaugurou o Gigante da Beira-Rio. Como esquecer daquele Grenal que acabou numa batalha campal entre os dois times? Mas eu já havia traído a vontade da família.

Virei gremista, daqueles que matavam aula no Julinho para assistir aos treinos. Daqueles que íam literalmente a pé ao interior para jogos importantes. Um deles, contra o então perigosíssimo Brasil de Pelotas, submeteu a mim e ao Roberto Thomé a uma caminhada de mais de 30 quilômetros até conseguir a primeira carona. Ganhamos o jogo e saímos do Bento Freitas debaixo de uma chuva de pedras.

Mas ficaram as lembranças simpáticas daquele estádio dos Eucaliptos, tosco, mesmo para a época, com arquibancadas de madeira e apenas um pedaço de alvenaria, para os colorados ricos. A cada gol do Inter – e eram muitos - a madeira da arquibancada vergava e parecia que ia quebrar.

Era no Menino Deus, como eu disse. Pertinho do lugar onde acabou sendo erguido o mais belo estádio brasileiro, até hoje chamado de Olímpico Monumental. Quando demoliram os Eucaliptos, puseram abaixo uma parte da minha infância, embora fosse, àquela altura, um problema dos colorados. Mas tomei um choque muito maior, sexta-feira passada, quando um repórter gaúcho da Band News FM informou que o Grêmio estuda a detruição do Olímpico e a construção de um novo estádio – “arena”, como eles chamam hoje em dia – em outro bairro da cidade.

Como se um lugar como aquele não pudesse ser modernizado e adaptado às exigências internacionais. Como se tivesse ficado pequeno um estádio com capacidade para mais de 50 mil pessoas, numa época em que, no mundo inteiro, o número de torcedores passa a ser menos importante do que o conforto para quem vai aos jogos.

Agora, decidiram destruir pelos alicerces o resto da minha infância e a melhor parte da minha adolescência.

Um comentário:

PoliPosition disse...

querido tricolor Marona
Xiqueiro penhorado. Dívida está em vários andares. Impossível construir pois não saiu CND.
Mesmo assim o texto tem sua poesia.
Abs

Marco Poli

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