segunda-feira, 30 de junho de 2008

Editor de jornal não conhece pobre

Irmão mais velho de três filhos, eu vi minha mãe servir a mim, aos meus irmãos e ao meu pai e fugir da cozinha para que ninguém percebesse que ela deixaria de comer. Isto não me torna melhor do que ninguém. Mas me ensinou a entender os resultados da pesquisa do Ibase sobre os beneficiários do Bolsa Família.

Com a manchete de sábado – “Fome atinge maioria dos que têm Bolsa Família” – O Globo pretendia fazer jornalismo de oposição. Mas o esforço para contrariar o presidente da República acaba por levar o jornal a antagonizar os pobres, o que não é apenas incorreto, mas pouco inteligente.

A manchete distorce os dados da pesquisa feita pelo Ibase. Afirma que a maioria deles padece dos males da fome. Não é verdade. Apenas “20,7 por cento das famílias inscritas apresentam situação de fome”, segundo o Ibase. Outros 34,1 por cento dos titulares dos cartões do programa “têm algum tipo de falta de comida”. Se “algum tipo de falta de comida” fosse fome, os pesquisadores não teriam estebelecido diferença entre os dois grupos.

Além desta denúncia – falsa e fruto de deturpação da leitura do resultado da pesquisa – O Globo destaca várias outras, enfatizando como insólitas conclusões normais dos pesquisadores:

· “Muitos deixam de gastar com comida para comprar remédios”.
· “Enquanto as famílias aumentaram, em geral, o consumo de alimentos básicos, como arroz e feijão, houve um acréscimo na aquisição de biscoitos e industrializados”.
· Dos usuários, 46 por cento também usam o Bolsa Família para comprar material escolar.

No primeiro parágrafo da reportagem, O Globo afirma algo que não aparece na pesquisa em momento algum, pelo menos não nas informações que o próprio jornal divulga: “A transferência de renda serve, muitas vezes, como um cartão de crédito para comprar eletrodomésticos, dada a regularidade dos depósitos”.

A manchete da página interna sustenta esta denúncia que o jornal já vem fazendo há algum tempo:

“Geladeira nova, sem sempre cheia”.

Uma leitura desatenta da página toda pode levar o leitor a várias conclusões que certamente reforçam estereótipos preconceituosos e classistas:

· Pobre não sabe gastar. Bota dinheiro fora em besteiras. Se você dá esmola para um mendigo, ele gasta tudo em cachaça. Ô raça!
· Veja que gente burra: compra fogão e não tem o que cozinhar; compra geladeira e não tem o que guardar. Devem comprar geladeira e fogão como objetos de decoração, para fazer média com a vizinhança.
· Tem pobre que recebe dinheiro para a comida e continua passando fome.
· Gastam a maior parte do dinheiro dado pelo governo com biscoitos, doces, refrigerantes e açúcares.

Uma leitura atenta da mesma página, no entanto, leva o leitor a concluir: jornalistas não conhecem pobre.

Não sabem, por exemplo, que quando a comida é pouca, as mães servem os filhos e o marido e ficam sem comer ou comem menos, razão pela qual metade dos titulares sofre com fome ou com algum tipo de carência alimentar. Vejam que dos titulares dos cartões do Bolsa Família, 94 por cento são mães.

Não sabem também que para pobres e miseráveis o açúcar, de qualquer tipo, ainda que não seja o alimento ideal, é aquele que mantém as crianças ativas e ajuda adiar a vontade de comer de novo - é o que se chama de enganar a fome. Essa gente nunca tomou café preto com farinha de mandioca e muito açúcar como substituto de uma refeição decente.

O Globo ilustra sua incompreensão com um feature em que conta a história de uma piauiense, mãe de três filhos, que recebe R$ 94 por mês do Bolsa Família. O repórter tenta arrancar dali mais tristeza do que dona Clotilde pode dar.

Conta que, depois que passaram a receber o Bolsa Família, eles comem arroz e feijão diariamente. E o jornal lamenta em seguida: “Mas a certeza de comida todos os dias acaba nessa combinação. Ela conta que só uma vez por mês consegue comprar carne bovina”.

Na foto, numa casa de sapê, os dois filhos de uma Clotilde muito magra comem cada um o seu prato de arroz e feijão. Não se vê o prato dela. Ela acaba confessando um desvio de objetivos do programa: comprou um fogão, “porque a minha vida foi cozinhar com carvão”. Dona Clotilde tem geladeira, a perdulária. Diz que compra ovos de vez em quando e que usa parte do dinheiro em material escolar, roupas, sandálias e, vejam só, biscoitos e sucos para a merenda dos filhos.

O Globo podia concluir: Dona Clotilde já está abusando.

A leitura dos gráficos da pesquisa desmente categoricamente os títulos e o enfoque dos textos do Globo.

O dinheiro do programa é gasto principalmente com (respostas múltiplas):

1. Alimentação – 87%
2. Material escolar – 46%
3. Vestuário – 37%
4. Remédios – 22%
5. Gás – 10%
6. Luz – 6%
7. Tratamento médico – 2%
8. Água – 1%
9. Outras opções – 1%

Estarão aqui neste último item, outras opções, os tais eletrodomésticos?

Verdade seja dita: antes de mim, o http://blogdomello.blogspot.com/ escreveu sobre a manchete do Globo de sábado. Numa linha de raciocínio parecida.

Um comentário:

João Pequeno disse...

Escrever em linha de raciocínio com o "Mello", do "Blog do Mello" é escrever errado. Porque a linha que ele segue não é de raciocínio, e sim do mais vagabundo preconceito "tri-de-esquerda".

O Globo errou não ao bater no maior clientelismo nunca este visto neste país, mas ao dar respaldo ao uma pesquisa do Ibase - ainda mais depois que o IBGE, demonstrou que a obesidade é problema maior no Brasil e que a fome por aqui está longe de ser a enormidade alegada.

O Ibase foi o mesmo que, tempos atrás, deu como "contradição" o fato de 87% dos brasileiros acreditarem que existe racismo no Brasil e "apenas" 4% se considerarem racistas, como se a quantidade dos que acreditam na existência de algo ruim tivesse que vir acompanhada da adesão de número semelhante a esta coisa.

Ora, 1) se 4% já se declaram racistas, então os 87% acertaram: existe racismo no Brasil, não importa em qual proporção e nem depende da adesão deles.

2)perguntemos às pessoas se elas acham que existe corrupção no Brasil. Não duvido que perto de 100% acreditem que sim. Isto faria de quase todos eles corruptos?

Trata-se apenas de um exemplo para ilustrar a desonestidade intelectual com que o Ibase tem tratado temas dos quais não é observador e analista isento, mas militante que os números em considerações malandras a serviço do discurso politicamente correto.

é a mesma coisa na consideração sobre o Bolsa Família. Desde quando geladeira vazia é sinônimo de fome? Só para início de conversa, esta, vá lá, análise, desconsidera as diferenças de hábitos entre as pessoas.

Por que muitas delas não podem comer na rua? Ou, dependendo do tempo livre de algum membro da família, comprar e consumir alimentos diariamente ou a cada dois, três dias?

Se geladeira vazia fosse sinônimo de fome, minha família, moradora do Leblon, estaria incluída entre os "excluídos" oficiais do Ibase e do governo Lula.

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