Eis o texto do professor e jornalista João Batista de Abreu me contestando. Não aquele que ele diz ter sido censurado, em que ele não se identificava. Este ele assina em baixo. Tenho certeza de que muita gente pensa como ele. Ele representa o consenso, sem contar que, como se diz na minha terra (a mesma do Iberê e do Golbery), o professor é "tri-de-esquerda", o que faz o maior sucesso na categoria e nas universidades. Mas não vou responder porque acho justo que a última palavra seja dele. Afinal, não lhe faltam bons argumentos, ainda que eu discorde de vários deles.
Jornalistas e advogados costumam recorrer a discursos que, amparados na filosofia sofista, tendem a justificar ações as mais variadas, até mesmo as violentas. Desde os tempos da Grécia Antiga, por mais odientos que fossem os crimes, sempre surgia um profissional para ponderar, com sensatez e inteligência, que aquela versão predominante não correspondia à veracidade dos fatos. O curioso é, que na maioria das vezes, essas argumentações nobres e fundamentadas tendiam a favorecer os grupos hegemônicos na sociedade, geralmente aqueles que dispunham de mais recursos e desfrutavam de maior prestígio social.
Estamos no século XXI e o discurso sofista permanece vigente. A técnica é simples: admitem dois ou três pequenos excessos da parte a ser defendida, utilizam-se dois ou três argumentos baseados no senso comum, no melhor estilo silogista do tipo “jovem de classe média é pitbul, pitbul é violento, logo jovem de classe média merece morrer”. Temos aí um enunciado eficiente para amparar a defesa, por mais absurdos que sejam os crimes.
O tema é a briga entre grupos de jovens de camadas médias e o pano de fundo, a Zona Sul do Rio de Janeiro, com sua pecha de violência. O episódio envolve uma promotora de Justiça ameaçada de morte por um traficante, o filho de 19 anos, seus amigos, um policial militar que atua sem farda para proteger o filho da promotora e outros jovens, supostamente praticantes de artes marciais.
O discurso sofista considera “natural” atirar em alguém desarmado desde que o atirador se sinta ameaçado. Curioso argumento este que, se levado a extremo, justificaria uma carnificina na cidade diante da quantidade de pequenos conflitos que acontecem todos os dias entre jovens e adultos (que dizer dos pequenos acidentes de trânsito) em todas as grandes cidades do país.
Esse argumento me faz recordar um episódio, 28 anos atrás, em que o artista plástico gaúcho Iberê Camargo matou a sangre frio, numa rua de Botafogo, um homem que matinha uma discussão áspera com a mulher. Iberê se sentiu ofendido com as ameaças verbais daquele homem e atirou nele, que estava desarmado. Naqueles tempos da ditadura, os jornais noticiaram que, por intervenção do chefe da Casa Civil, o também gaúcho general Golbery do Couto e Silva, o artista – alegando legítima defesa – ficou impune até os dias de seu descanso eterno no inferno.Anos depois, Golbery foi encontrar-se com o amigo. Desde então, toda vez que vejo um quadro de Iberê Camargo tenha ânsia de vômito.
No episódio atual temos um jovem de 19 anos, filho de uma servidora pública, que tem o privilégio de dispor de outro servidor público como segurança. Não a caminho da escola ou do trabalho, não a caminho do trabalho da promotora, mas das baladas de sexta-feira. Isso tudo às custas do dinheiro público, ou seja, dos recursos mantidos com os nossos impostos, pessoas que também têm filhos adolescentes, gente que não dorme à noite enquanto seus filhos não retornam a casa com medo da violência na cidade. Estes não têm direito a capangas pagos pelo Estado. Estão a mercê da sorte e esperam contar com a segurança prestada justamente pelas autoridades policiais.
Tenho três filhos adolescentes, que também freqüentam a noite. Os três aprenderam artes marciais. Não, como argumentam os estúpidos defensores do senso comum, para propagar a violência, mas para dela se defender. Seus professores de artes marciais os orientam a evitar provocações, mas não os ensinam a enfrentar capangas armados e, pior, armados pelo Estado para defender os cidadãos.
Repare como esse episódio nos ensina a reconhecer nossa sociedade.
1) O episódio, comum na noite das grandes cidades, terminaria na delegacia, com uma possível denúncia de troca de agressões e lesões corporais, se o policial militar sem farda – único armado com pistola – não tivesse disparado.
2)_No dia seguinte ao episódio, o procurador-geral de Justiça – maior autoridade do Ministério Público no Estado – dá entrevista prometendo mandar investigar o fato, mas se antecipa às investigações e reconhece como “coerente a princípio” a versão de legítima defesa do policial militar (primeira página de O Globo, 29 de junho de 2008).
3) Os principais envolvidos prestam depoimento à Polícia Civil durante o dia e se deixam fotografar. O filho da promotora depõe na delegacia à noite, sem aviso prévio. A versão de legítima defesa só aparece três dias após o assassinato, quando não há mais possibilidade de o exame de corpo de delito confirmar ou rejeitar a versão do policial.
4) O Sistema Penitenciário divulga ameaças de morte a integrantes do Ministério Público, sem levar em conta que divulgações dessa natureza só contribuem para fortalecer os criminosos na cadeia e intimidar os agentes da lei.
5) E o que considero mais lamentável: até agora não vi nenhuma ONG, entidade de direitos humanos, OAB ou o onipresente Viva Rio se solidarizar publicamente com a família do jovem Daniel. Por que essas pessoas, ávidas pelos holofotes da TV, se mantêm no anonimato?
Não é preciso ter sido editor do Jornal Nacional para constatar que alguma coisa cheira mal.
No entanto, caro Marona, devo confessar que concordo com você num prognóstico.
O policial militar Marcos Parreira deverá ser absolvido ou, no máximo, pegar uma pena branda, daquelas que, daqui a algum tempo, tomaremos conhecimento numa nota de pé de página de que fulano de tal, aquele que nossa memória já nem guarda mais o nome, está cumprindo pena em liberdade por bom comportamento.
Concordo com seu vaticínio, não pelos argumentos que encheriam de orgulho qualquer filósofo sofista, mas por reconhecer que a justiça de nosso país, com as exceções de praxe, tende a seguir os ditames de uma sociedade desigual, injusta e sofista, em que predominam os nobres argumentos que favorecem o corporativismo e grupos de poder.
João Batista de Abreu
Jornalista e professor universitário
Um comentário:
Sofismo - bem fraquinho, ainda assim - é comparar um caso em que alguém atira em que o está agredindo ou ameaçando com outro em que o assassino atira em uma discussão que nada tem a ver com ele.
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