segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Quem mente mais: jornalista ou historiador?

Jornalistas mentem por má-fé, quase sempre, mas também por ignorância. Escrevem às pressas, não têm tempo de apurar com a necessária dedicação. Precisam construir o esqueleto de um texto em alguns telefonemas. Esta urgência que causa erros é da natureza da profissão.

Mas o que dizer de historiadores que mentem?

Historiador, por definição, deve ser rigoroso com o que apura e com o que escreve. Não pode ser um simplificador. Não pode mentir para fazer valer suas teses.

O historiador Angelo Segrillo, convidado pelo Globo para escrever um texto sobre o massacre de Bombaim como primeiro desafio internacional de Barack Obama, comete um erro inaceitável apenas para justificar uma crítica genérica aos Estados Unidos. Não é mentira literal, mas é manipulação:

"Uma coisa é o discurso, outra a prática. Já vimos, no passado, governos conservadores republicanos como o de Nixon estabelecendo uma détente surpreendente para com a URSS e a China, e governos democratas liberais, como o de Clinton, utilizando a força armada na região da antiga Iugoslávia."

Segrillo manipula em relação às motivações e as razões de Clinton. Esconde dos leitores o mais importante: a intervenção americana na Bósnia salvou milhares, talvez milhões de vidas humanas, e foi a única reação ética aceitável diante da covardia da ONU, da Otan e de todos os países europeus, em cujo quintal, a poucos quilômetros de Viena, ocorria o maior genocídio desde a Segunda Guerra Mundial.

Entre 1991 e 1999, centenas de milhares de habitantes de algumas das cinco repúblicas da extinta Iugoslávia foram violentados, torturados e mortos nas guerras que envolveram bósnios, croatas, albaneses e sérvios, estes últimos quase sempre na condição de agressores.

Ao longo de dois séculos, aquela região foi invadida e ocupada, literalmente, por países como a Turquia, Grã-Bretanha, França, Rússia, Ásutria, Itália e Alemanha. Nunca pelos Estados Unidos. Mas erram, também aqui, os historiadores que tentam encontrar culpados externos para a tragédia dos balcãs. Os maiores responsáveis são os habitantes da região e os protagonistas das guerras civis. Se algum fator externo pesou foi a omissão e a tolerância internacionais com os genocidas locais, sérvios ou não.

A Iusgoslávia fabricada pelo comunismo e chefiada por Tito tampou à força, a partir de 1945, um caldeirão de ódio econômico, étnico e religioso, que acabou por explodir na forma de nacionalismo histérico e selvageria indiscriminada sob a liderança do sérvio Milosevic, ele próprio um fiel seguidor de Tito até a morte do chefe. Milosevic usou o nacionalismo como sustentação ideológica dos golpes que perpretou para tentar controlar todas as repúblicas da ex-Iugoslávia.

Deflagrou pelo menos duas guerras, que se generalizaram em novos conflitos. A guerra sérvio-croata e a guerra sérvio-bósnia foram as mais prolongadas. A guerra contra a Bósnia deixou o registro de 300 mil mortos e três milhões de refugiados. Os sérvios não usavam exércitos regulares, mas milícias formadas por bandos de criminosos.

Foi ali, na Europa, sem nenhuma reação. O mundo assistia acovardado ao massacre, que ganhou o nome de faxina étnica, e aos métodos terroristas dos agressores.

Em 1994, os sérvios dispararam um morteiro contra o mercado público de Sarajevo, uma das cidades mais ecumênicas e cosmopolitas do mundo: 68 mortos.

Nenhuma reação internacional, que já há bastante tempo se limitava à manutenção de uma pequena "tropa de paz" da ONU, sem poder de intervenção.

Em 1995, os sérvios seqüestraram 350 soldados da ONU.

Ficou por isso mesmo.

Neste mesmo ano, em julho, os sérvios puseram para correr 400 soldados da ONU, todos holandeses, que protegiam milhares de refugiados albaneses e muçulmanos em Srebrenica, e em poucos dias mataram 7.400 pessoas desarmadas, a maioria crianças e adolescentes.

Mesmo assim, ONU, Otan e governos de países europeus não fizeram mais do que ameaças formais em notas oficiais.

Só sete semanas depois, quando os sérvios atacaram de novo o mercado público de Sarajevo, matando 38 civis, é que o presidente americano Bill Clintom decidiu agir, por conta própria, e autorizou o bombardeio aéreo das milícias fiéis a Milosevic.

Foi o suficiente para impor negociações entre as partes em conflito e uma trégua duradoura, que depois de algumas escaramuças menos importantes, pôs fim ao massacre étnico.

Clinton, ao contrário do que afirma o historiador Angelo Segrillo, não contrariou nenhum princípio democrático "utilizando a força armada na região da antiga Iugoslávia". A afirmação só sustenta a dialética capenga do professor porque ele simplifica os fatos e esconde a verdade
histórica.

Nem todas as guerras são injustas. Nem todas as intervenções armadas são desumanas. Pode ser difícil reconhecer isto quando precisamos amparar conceitos ideológicos que desabam a qualquer ventania.

Muitas das informações deste texto estão no magnífico livro "Pós-guerra, uma história da Europa desde 1945", de Tony Judt.

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