Por João Almeida Moreira
A um mês da decisão final do impeachment no Senado, Dilma
Rousseff acredita que vai vencer a batalha. Em entrevista ao DN em Brasília,
acusa Michel Temer de "usurpador" e "mesquinho" e defende
Lula, "íntegro e correto".
Segundo os placards publicados na imprensa, de um universo
de 81 senadores há 18 dispostos a votar contra o impeachment e
25 ainda indecisos. Precisa de 27 votos, ou seja, de convencer nove dos 25
indecisos, para regressar. Está otimista?
Estou bastante otimista. Acho que vamos vencer essa batalha.
O que se relata nos jornais não necessariamente é o que ocorre na cabeça dos
senadores, muitos não se comprometem para não sofrer pressões. Nós precisamos
de 27, eles precisam de 54, há muitos indecisos, as contas são feitas no fim.
Acredito que a maioria dos senadores vai tomar a atitude mais correta e
democrática, penso que restam poucas dúvidas sobre o facto de que o pedido
de impeachment não se sustenta.
Diz isso porque recentemente foi ilibada por peritos do
Senado das chamadas "pedaladas fiscais"? Mas, segundo os mesmos
peritos, sobram decretos de crédito suplementar editados sem a autorização
necessária do Congresso...
Acusavam-me de seis decretos, sobram três. E, segundo a
perícia, foram medidas tomadas por todos os presidentes nos últimos 20 anos.
Das chamadas "pedaladas", como disse, a perícia não considerou que eu
estivesse envolvida fosse no que fosse. Portanto chegamos a uma situação absurda:
se eu não estou envolvida em nenhum ato, sou acusada do quê?
O senador Cristovam Buarque [PPS] disse em entrevista
recente ao DN que a senhora o chamou para falar com ele. Tem conversado com
muitos senadores?
Com vários, mas não lhe vou dizer os nomes.
Já decidiu se vai ao Senado defender-se pessoalmente?
Se resultar em maior esclarecimento do caso, irei. Mas se
resultar num processo de desgaste político, sem uma disputa, digamos, positiva,
não irei. À partida, porém, posso dizer-lhe que pretendo ir.
E já decidiu se vai à abertura dos Jogos Olímpicos, onde
estará também o presidente interino Michel Temer [PMDB]?
Eu ainda não recebi convite do Comité Olímpico
Internacional, nem tão-pouco do brasileiro. Vou avaliar as condições em que
vou, não irei em condições que me diminuam. Seria justo que fosse, uma vez que
quem assegurou os recursos necessários, a segurança e a divulgação do evento
fomos nós, o Governo Federal. Quando fui afastada, no dia 12 de maio, estava
tudo sob controlo, na esfera federal, as questões que surgiram nos últimos
tempos [estado de calamidade pública decretado pelo governador Francisco
Dornelles] são da esfera do governo do Estado e do município e devem ser
respondidas pelas autoridades competentes.
Foi noticiado que, enquanto dura este período em que
convivem presidente afastada e presidente interino, o Palácio da Alvorada, onde
vive e trabalha, sofreu racionamentos quer no uso de aviões oficiais quer até
em questões de alimentação. O que sucedeu, de facto?
Olhe, esta lei do impeachment é de 1950 e
cheia de vazios legais aproveitados por eles [pelo governo provisório]. Em
relação ao impedimento de voos, recorremos à justiça, que determinou que pelo
menos aos trechos entre Brasília e Porto Alegre [residência pessoal de Dilma]
tenho direito. O processo dos alimentos foi superado porque uma juíza disse que
não podiam vetar nada desse teor à minha equipa. E houve também uma tentativa
de cercear, pior, de controlar quem entrava e saía daqui do Palácio da Alvorada
- ainda sobra ali um resto de uma barreira colocada por eles para,
alegadamente, minha segurança, mas que eu não pedi...
Esperava esse tipo de atitude de Michel Temer?
Não. É uma atitude - em bom português - mesquinha e pequena.
Até porque eles são um governo provisório. E ilegítimo. Liderado por um
vice-presidente que conspirou e conspirar é demonstrativo de um carácter
bastante equívoco.
Continua a classificar o presidente interino de
"usurpador"?
Continuo, claro: o vice-presidente é um usurpador.
Das políticas mais controversas do governo interino,
começando pela nomeação de um ministério de 25 homens, brancos...
[interrompe] Homens, brancos e ricos...
... qual a que mais a afligiu?
A que mais me deixou de cabelos em pé, pelo alcance da
medida, foi a do teto dos gastos. Essa medida prevê um teto de gastos para
saúde e educação limitado à inflação do ano anterior, o que significa que neste
país jovem, com cada vez mais procura por ensino, se vai investir menos em
educação e, pior, essa medida não é por dois anos mas por 20, ou seja, vincula
os próximos cinco presidentes. Ora, o Brasil tem capacidade, já o demonstrou,
para ser aquele país com que todos sonhamos mas, para o ser, tem de ser através
da educação. Até ao fim do século XIX vivemos na escravidão, temos ao longo do
século XX um acumulado de dívidas sociais para com a população brasileira que
começamos a resgatar através de programas sociais que incluem o acesso a
serviços como a educação. E é a educação que garante que se perpetue uma melhor
distribuição de riqueza. Uma distribuição de riqueza que nos permitiu sair do
Mapa da Fome da ONU em 2014. O governo interino diz que gastamos muito em saúde
e em educação, um absurdo. Não tem contenção de gasto que possa comprometer o
futuro do país. Com este retrocesso político, não há economia que recupere.
Mas é inegável que o gasto público cresceu muito e que,
sob a sua administração, a economia registou indicadores negativos. A oposição
e boa parte da imprensa chama à sua gestão "ruinosa",
"desastrosa", "terrível". Assume, pelo menos, parte da culpa?
A partir de 2008 e 2009 o mundo enfrentou uma crise
profunda, em Portugal sentiram-na bem. Mas não só, em toda a Europa, no Japão,
nos EUA, no mundo desenvolvido. Os países emergentes desenvolveram então
políticas anticíclicas para impedir que a crise chegasse a nós. Por isso, entre
2011 e 2014, adotámos isenções fiscais, para reduzir o custo do trabalho e do
capital, e também um conjunto de medidas de investimento para manter o emprego
e a riqueza. Até fomos bem-sucedidos porque nesse período tivemos a menor taxa
histórica de desemprego no país.
E depois?
O que acontece é que, depois dos países desenvolvidos, a
crise atingiu os emergentes por causa do fim do superciclo das commodities,
da desaceleração forte da economia chinesa e da demora na recuperação da
economia dos EUA, que cresceu "de lado", e da União Europeia, que nem
cresceu. No nosso caso, ainda houve uma das piores secas da história, em 2014 e
2015, que atingiu o Sudeste do Brasil, onde estão os reservatórios, aumentando
o custo da energia. A maior cidade da América Latina, São Paulo, racionou água.
Assim, aumentámos as tarifas da energia, gerando inflação, e os alimentos
também subiram de preço, sob impacto da seca. Mas o pior de tudo, a grande
diferença no Brasil, foi a crise política paralela à económica. A crise
económica não teria o peso que teve se não tivesse a crise política por trás.
[O economista americano Joseph] Stiglitz disse há uns tempos, e vou a citar de
cor, que a crise económica era inexorável, o que o país não esperava era uma
crise política desse tamanho.
Pela a crise política responsabiliza a oposição, PSDB, e
o presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha [PMDB]?
A crise política decorreu de uma eleição muito disputada,
que gerou descontentamento dos perdedores - pediram recontagem dos votos e
auditoria às urnas, sem sucesso. E depois decorreu da ação do Congresso, com as
suas pautas-bomba [projetos de lei que aumentavam a despesa pública aprovados
pelos parlamentares], uma irresponsabilidade inacreditável. E, no entanto, no
Brasil a crise é atribuída exclusivamente a mim, como se o mundo não estivesse
em crise, como se a crise tivesse surgido do nada.
Mas não considera que tomou medidas erradas?
As nossas medidas não ocorreram sequer: foram chumbadas na
Câmara. Convém não esquecer quem era a pessoa que estava na presidência da
Câmara [Eduardo Cunha]... A mesma pessoa que mais tarde, para se livrar do
processo que lhe foi movido no Conselho de Ética, quis os votos dos deputados
do PT, negociando em termos nada republicanos. Como não lhe demos esses votos,
ele aprovou o impeachment em retaliação.
Porque Cunha a odeia tanto?
Porque esse senhor é ultraliberal na economia e
ultraconservador na área social, logo contrário às nossas políticas na área -
aliás, tem a mesma agenda deste governo provisório. Por isso não se consegue
chegar a um consenso quando se negoceia com ele, ele não cede, ele impõe um
caminho que não é o caminho dos 54 milhões de brasileiros que votaram em nós.
Mais: ele precisava que saíssemos, como prova o que aquele senhor ministro
provisório do Planeamento [Romero Jucá, do PMDB] disse em gravações, quando se
lamenta, a dado trecho, que eu não bloqueei a Lava-Jato, e, mais tarde, quando
diz "Temer é Cunha". Foi aliás esse senhor Cunha que, como você diz,
me odeia, quem nomeou a maioria dos ministros do governo interino.
Mas se agora demoniza o PMDB, durante anos a fio esteve
coligado com ele...
Não, eu não demonizo todo o PMDB. O PMDB era um centro
democrático e progressista durante a Assembleia Constituinte, de 1988. Mais
tarde, ao coligar-se com o PSDB e o PT, permitiu a governabilidade. Nós somos é
contrários à fragmentação partidária que fez desaparecer os partidos
programáticos e criar partidos movidos apenas por interesses ao centro. Para eu
conseguir ter uma maioria simples no Congresso preciso de 14 partidos e para
uma maioria de dois terços preciso de quase 20! Nenhum país é governável com 37
partidos. E o senhor Cunha é que opera esse centro, pela direita. Ele é a
eminência parda por trás do presidente do governo provisório.
Cunha já renunciou à Câmara, quase todos os dias é
envolvido em novos escândalos, chorou até em público. Consola-a que a pessoa
que puxou o gatilho do impeachment esteja numa situação tão
dramática?
Não, não, isto não é questão de vingança pessoal, é uma
questão política. Esse senhor colocou o presidencialismo em risco ao promover o
golpe.
Mantém então a tese do golpe?
Como não é golpe militar, o padrão que está na cabeça das
pessoas na América Latina e que desde o fim da guerra fria deixou de existir,
eles dizem que não é golpe. Mas é um golpe sim: um golpe parlamentar, utilizado
por segmentos que através de eleições não conseguiriam chegar ao poder, e se
fazem valer do impeachment, mesmo sem crime de responsabilidade,
para lá chegarem. No parlamentarismo há contrapeso de poder entre
primeiro-ministro e presidente da República, aqui o presidente da República é,
em simultâneo, chefe do Estado e do governo, por isso o contrapeso é haver
crime de responsabilidade. E esse crime não existe. O que é grave, muito grave,
é que nestas circunstâncias um governo interino toma o poder e desmonta toda a
política governamental mesmo sabendo que pode durar apenas dois meses.
Mas tomou-o com o voto, democrático, de deputados e
senadores na votação do impeachment. Acha então que o Congresso é a
fonte de todos os males na política do Brasil?
Não é o Congresso, não são os deputados ou os senadores, é o
sistema. O sistema é que incentiva a pechincha política. E não podemos ter
indivíduos virtuosos numa instituição que não o é. Eu defendo o que faz um
pequeno vizinho nosso, o Uruguai, que tem frentes amplas de partidos para
garantir coerência ideológica. Você já imaginou se a Espanha tivesse 37
partidos? Eles já estão com dificuldades com cinco ou seis... É disso que falo.
Qual a sua opinião pessoal sobre o juiz da Lava-Jato
Sérgio Moro?
Não, não tenho opinião sobre o juiz Sérgio Moro, a minha opinião
é sobre o combate à corrupção. A corrupção no Brasil é uma prática de séculos.
Porém, no governo Lula, mudou-se o princípio de escolha do procurador-geral da
República: passou a ser escolhido por votação entre os procuradores. Antes era
escolhido pelo presidente. E sabe como a imprensa chamava ao procurador-geral
da República no tempo do governo anterior ao do Lula, não sabe?
Engavetador-geral da República.
Pois é: punha o processo incómodo na gaveta, fechava a
gaveta à chave e jogava a chave na água. A partir de Lula passou a haver
autonomia no Ministério Público, a fortalecer-se a polícia federal,
instituiu-se o portal da transparência. Já no meu governo criámos a lei de
combate a organizações criminosas, porque até 2013 só o corrupto era punido e não
o corruptor, e instituímos a lei da delação premiada. Demos, portanto, novos
instrumentos aos investigadores. Posto isto, penso que na Operação Lava-Jato
houve excessos, como as fugas de informação seletivas, transformando a luta
contra a corrupção em luta política, focando só no PT, durante mais de um ano,
até se perceber que isso não era sustentável e começar a atingir outras forças.
Voltando ao princípio da sua pergunta sobre Moro, não são as personalidades que
influem, imprescindível é que as instituições sejam virtuosas porque nós, os
seres humanos, não somos.
Concorda que foi um erro, pelo menos político, a nomeação
de Lula ministro?
Por que?
Porque, surgindo logo a seguir à condução coercitiva
dele, pareceu uma blindagem para fugir da primeira instância, garantir foro
privilegiado e ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Nós nomeámos o Lula porque queríamos barrar o impeachment através
da capacidade dele. Essa sua teoria é a dos nossos adversários. Se não repare:
no mensalão, todos foram condenados, todos cumprem pena. Quem julgou? O Supremo
Tribunal Federal. Já no "pai" do mensalão, um caso chamado mensalão
mineiro que precedeu o mensalão federal, o senhor que o executou, por acaso do
PSDB, anda por aí, solto, e andará mais uns seis anos. Quem julgou? A primeira
instância. Por isso, essa tese da impunidade do Lula no Supremo e do foro
privilegiado para fugir do Moro é uma mentira e é um desrespeito para com o
Supremo. Até porque o Supremo não permite recurso, a primeira instância permite
andar a recorrer, recorrer.
Considera então Lula inocente de tudo o que o acusam?
As acusações contra ele são um absurdo. Eu trabalhei com o
Lula, tenho a certeza de que ele é uma pessoa íntegra e correta. O que estão a
fazer é a tentar impedir que ele seja candidato em 2018, se você olhar as
sondagens, entende porquê: porque apesar da perseguição diária na televisão ele
está na frente.
Caso o impeachment seja ratificado, como
pensa ocupar o seu tempo?
O impeachment não vai ser ratificado!
Então, reformulando: agora que, sem compromissos
oficiais, tem tido mais tempo, como o tem ocupado?
Lendo mais: olhe, literatura portuguesa também, por exemplo.
O Eça [de Queirós] é sublime. Na escola li Alexandre Herculano, éramos
obrigados. E o Gil... o dramaturgo, como se chama?
Vicente.
Isso.
Agora, o novo plano de educação quer tornar facultativa a
leitura de clássicos portugueses...
Acho que não está correto. Digo-lhe mais, se a nossa língua
tivesse a força da edição inglesa, escritores lusófonos teriam a importância
global de alguns ingleses e franceses. Como o Camões. O Eça é um deles,
equivalente a um [Honoré de] Balzac. Adorava o João da Ega, de Os Maias. E do
[Fernando] Pessoa nem se fala. Há um hábito aqui no Brasil, eu diria que é um
bom hábito, de citá-lo, de procurar uma citaçãozinha dele, fica sempre bem
[risos]. Mudando de assunto: nesses dias, por acaso, li O Último
Cabalista de Lisboa [romance de Richard Zimler].
Mas em Portugal há a ideia de que Lula era mais amigo de
Portugal - no sentido de ter firmado mais acordos comerciais e priorizado mais
o país em relações diplomáticas - do que a presidente. Concorda?
Claro que não. O que se passa é que Lula viveu o momento da
expansão. Tanto o Brasil como Portugal estavam numa situação muito mais
favorável, o que facilitava acordos comerciais, aprofundamento de relações.
Quando eu assumi, em 2011, Portugal estava numa crise imensa, olhando para
dentro, o que eu não censuro, porque tinha de ser assim. Portugal é a nossa
matriz europeia. Eu ando em Portugal e de repente numa esquina sinto que vi uma
tia, um primo, é uma sensação incrível. Ainda mais para mim, que sou um pouco
búlgara e muito mais portuguesa, neta de portugueses. Falta de interesse em
Portugal? Desminto.
O 25 de Abril surge numa altura em que está no auge da
sua luta contra a ditadura. Marcou-a?
A Revolução dos Cravos foi fundamental para mim. Foi um
sinal, do tipo, se Portugal conseguiu, vamos conseguir também porque há aquela
proximidade, é o país onde a gente se sente em casa quando está na Europa, é a
língua, mas é mais do que a língua, tudo é familiar. Lembro-me de que a
primeira vez que fui a Portugal foi precisamente em 1974, quando a história
estava a passar por ali. Nós comprávamos livros da Editorial Estampa - ainda
existe? - porque tinha todos os livros proibidos aqui.
Álvaro Cunhal, Mário Soares, esses nomes dizem-lhe algo?
Ambos. E outros. Sobre o Mário Soares, especificamente, o
Leonel Brizola [referência da esquerda brasileira falecido em 2004] escolheu
Portugal para se exilar por influência dele e eu, que era aliada do Brizola,
tive relação com ele. Mais tarde, Lula também teve relação próxima com o
Soares.
No Palácio da Alvorada, à espera de que algo aconteça
Dilma Rousseff está restrita à residência oficial, na proa de Brasília, uma cidade em forma de avião. O tempo passa devagar enquanto a presidente afastada espera o veredicto que pode mudar a sua vida
Numa cidade chamada de "avião", por lembrar, vista de cima, uma aeronave, com duas asas e um eixo central, o Palácio do Planalto, local de trabalho dos presidentes do Brasil, fica no lugar equivalente ao cockpit, por decisão do urbanista Lúcio Costa que projetou Brasília nos anos 50 do século passado ao detalhe. E foi dali que Dilma Rousseff pilotou o país, de 2011 até maio, quando, afastada temporariamente em virtude do processo de impeachment, foi restringida ao Palácio da Alvorada, uma espécie de refúgio do comandante do avião, onde espera a decisão definitiva do Senado.
Minutos antes de se chegar ao local, há uma seta - ironicamente à direita - a indicar "Palácio do Jaburu", a residência oficial do presidente interino Michel Temer, homem a quem Dilma teve de ceder o Planalto. Em redor do Alvorada, à exceção de turistas - "this is the brazilian White House, daddy?" ("Esta é a Casa Branca brasileira, papá?"), pergunta ao pai uma menina com sotaque do Sul dos EUA, "a "presidenta" está lá mesmo, de verdade?", quer saber um outro adolescente vindo do estado do Pará - e de uma ínfima parte dos quase mil funcionários do local, não se vê ninguém. Aliás, em Brasília, cidade movida a gasolina, é raro encontrar um pedestre. Mais raro ainda encontrar um candango, ou seja, um natural de Brasília, cidade construída por migrantes.
Dilma vive no cenário ideal para quem está à espera, no meio do horizonte, coberta pelo céu tropical, cujas nuvens são tão baixas que parecem bater-nos na cabeça, sem uma brisa. Há bichos a voar, pardais, beija-flores, quero-quero, outros a cantar, cigarras e bem-te-vi, até há emas, primas direitas do avestruz, a circular pelos relvados do Alvorada, a poucos metros dos aposentos da presidente. E um dragão. Um Dragão da Independência, é claro. Os Dragões da Independência, guarda de honra criada pelo pombalino rei Dom José I para defender o chefe de Estado, usam penachos no capacete e não podem mover um músculo. As palmeiras e os ipês em redor do imóvel dragão, como se estivessem solidários, também não movem uma folha porque em Brasília, já se sabe, não há vento.
Melhor usar gravata
No país simultaneamente mais solene e mais informal do mundo, o porteiro do Alvorada avisa "lá dentro é melhor usar gravata, viu?", no instante anterior a apontar com o queixo para uma turista de blusa transparente e sussurrar "que coisa mais linda". A solenidade versus informalidade tem novo capítulo quando um segurança alerta para os horários rigorosos do Alvorada: "Ainda bem que chegou cedo, aqui é tudo ao segundo...". Minutos depois, o próprio, distraído pelos golos de Griezmann frente à Alemanha que passam na TV, exclama "xiii, já devia estar no plantão da portaria de cima".
Dentro dos muros do palácio, os pilares de mármore, as cortinas de vidro e o espelho de água, imagens de marca do Alvorada, de Brasília e da obra de Oscar Niemeyer, impressionam qualquer um. Menos as tais emas que olham para o ícone da arquitetura com indolência.
No Salão de Estado, Dilma parece confirmar as palavras do segurança e chega à hora exata, entre um almoço com o governador do Maranhão, Flávio Dino, dilmista empedernido, e uma reunião com o presidente nacional do PT, Rui Falcão, entre outros. "Um beijo só? Ah, você vem de São Paulo, não é?", diz a presidente. No Brasil, o número de beijos não distingue pedigrees bacocos mas denuncia proveniências geográficas. "Em Brasília damos dois, há lugares no Nordeste onde se dá três, sabia?, quanto mais efusivo o brasileiro mais beijos dá." Uma tapeçaria de Kennedy Bahia enche o salão de cor. Numa das maravilhas da arquitetura moderna, os livros são quase todos de urbanismo - The Endless City, Acropolis, Islamic Art, Gazzette des Beaux-Arts.
De encarnado e preto, Dilma passa uma hora em rápidas transições da defesa - Lula, opções económicas do seu governo - para o ataque - Temer, Eduardo Cunha . Só descontrai no fim com lembranças de Lisboa, da Feira da Ladra, das personagens de Eça. "São tão atuais, não são?". E saiu para outro compromisso para não desesperar enquanto espera pelo futuro.
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