FOTO DE MAIA RUBIM
Entrevista a Marco Weissheimer
Sul21: Em um artigo publicado na
semana passada, o sociólogo e cientista político Aldo Fornazieri afirmou que a
consequência mais trágica do golpe é a destruição do Brasil enquanto nação e a
sua decomposição moral. Do ponto de vista econômico, afirma ele, o país está à
venda. Do ponto de vista social, há um grande desastre em curso, com um
massacre de direitos. A senhora concorda com essa avaliação?
Dilma Rousseff: Concordo.
Acho que ele tem toda a razão. Há exemplos muito concretos, como a questão das
empresas que compõem a cadeia de petróleo e gás. Estamos vivendo um momento de
destruição dessa cadeia que era uma das mais importantes do país. Ela é uma das
mais importantes porque a produção de petróleo em águas profundas exige um
fornecimento de equipamentos e serviços de engenharia, uma expertise em
extração de petróleo em grandes profundidades sob grande pressão e altas
temperaturas. Ela exige uma tecnologia sofisticada. Todos os países
desenvolvidos – e mesmo os em desenvolvimento – que tiveram a experiência da
descoberta de petróleo buscaram, de alguma forma, internalizar essa cadeia,
fazendo que ela não fosse uma cadeia externa para não ter o efeito da chamada doença
holandesa. Nesta doença, você cria uma riqueza, por exportação ou exploração da
mesma, mas essa riqueza não é internalizada na forma de criação de empregos,
investimentos, desenvolvimento científico e tecnológico.
Como se chama essa política de internalização? Política de
conteúdo local. Essa política foi feita na Noruega e ninguém pode dizer que a
Noruega é chavista. Virou uma grande acusação para se interditar uma discussão
falar em chavismo, lembrando que Chávez foi muito bom para o país dele pois diminuiu
bastante a pobreza e acabou com a dominação externa da PDVSA (Petróleos de
Venezuela). A política de conteúdo local tinha um objetivo claro. Nós tínhamos
sido, na década de 90, os maiores produtores de navios, junto com a Coréia do
Sul. Nós estávamos em oitavo lugar e a Coréia devia estar ali pelo 13o lugar.
Hoje, a Coréia é um grande produtor de navios e de equipamentos para a extração
de petróleo. Ela manteve seu processo de industrialização e de internalização
que nós interrompemos no governo Collor quando acabaram com a indústria naval
brasileira.
Nós recuperamos essa indústria por meio da política de conteúdo
local. Segundo essa política, tudo o que puder ser produzido no Brasil deve ser
produzido no Brasil, mantendo-se a busca de mesmo custo, mesmo nível
tecnológico e mesma qualidade dos produtos. Essa política estava em curso e,
hoje, está sendo inteiramente destruída. O que estamos vendo hoje? Abre-se uma
licitação na Petrobras, dirigida a empresas internacionais. Todas elas são
grandes empresas de engenharia e todas são investigadas ou por questões
administrativas ou por questões criminais em processos de corrupção. Mas podem
participar da licitação. Já as nossas estão impedidas de participar. Com isso,
você destrói, não só a indústria naval, mas também a possibilidade de
fornecimento de equipamentos, exportando empregos para o Japão, Coréia, Estados
Unidos e para a própria Europa.
Esse processo de destruição da indústria naval brasileira e de
toda a política de conteúdo local, mais cedo ou mais tarde, vai chegar na
Petrobras. O nosso papel é impedir que isso aconteça. A internalização que
promovemos não era só de empresas brasileiras. Você podia internalizar aqui a
produção de navios de qualquer nacionalidade. Mas tinha que produzir aqui. Isso
foi feito em outros países do mundo. A Noruega fez isso quando descobriu que
tinha reservas de petróleo significativas. As nossas são muito maiores.
Quando elegemos um presidente, elegemos um projeto que é executado via orçamento. Se você congela o orçamento por vinte anos, está burlando a Constituição ao longo de cinco mandatos
A questão social é ainda mais grave. O modelo principal aí é a
emenda constitucional que foi aprovada congelando por até vinte anos os
investimentos. Mas ela não faz só isso não. Ela enrijece o orçamento e, ao
fazer isso, cruza duas coisas. Uma delas é o enquadramento do Brasil, mais uma
vez, depois que nós interrompemos o neoliberalismo do Fernando Henrique. Para
isso, é preciso “limpar” o orçamento, ou seja, tirar dele esses subsídios
desnecessários para os pobres. Essa é a ideia que está por trás dessa emenda
constitucional. Mas, além disso, ela também é uma medida de exceção. Está
consagrado na Constituição que nós somos um país democrático que elege seu
presidente pelo voto direto do povo brasileiro. Quando elegemos um presidente,
elegemos um projeto que é executado via orçamento. Se você congela o orçamento
por vinte anos, está burlando a Constituição ao longo de cinco mandatos. E onde
fica o direito ao voto direto?
Então, o
Fornazieri tem toda razão. Nós estamos vendo um processo de retrocesso, cujo
objetivo central é reenquadrar o Brasil. Nós, junto com praticamente toda a
América Latina, nadamos contra a corrente. Neste período, nós reduzimos a
desigualdade enquanto que, no resto do mundo, ela se ampliou. No resto do
mundo, a financeirização correu solta e levou a uma concentração de riqueza
nunca antes vista. Nós interrompemos as privatizações, a perda de direitos. Por
isso, agora, eles querem, também do ponto de vista geopolítico, reenquadrar o
Brasil, um país que ousou ser multilateral, dar prioridade para a América
Latina, para a África e para os BRICS, mantendo mesmo assim uma relação muito
cordial com os países desenvolvidos. O que estamos vendo não se trata apenas de
perda de direitos. Querem nos enquadrar em outro modelo, dar para nós outras
balizas, outros limites e outra configuração.
Essa é a dimensão mais profunda do golpe. A mais visível é aquela
expressa na frase “vamos estancar a sangria antes que eles cheguem até nós”,
antes que as investigações de corrupção cheguem à ala política dos golpistas.
Sul21: O golpe foi dado carregando
duas grandes “promessas” à sociedade brasileira: o combate à corrupção e a
retomada do crescimento econômico. Essas duas “promessas” fracassaram. O
desemprego atingiu níveis alarmantes e muitos dos investigados e indiciados na
Lava Jato estão governando o país. Considerando o “não cumprimento” desses
temas poderíamos dizer que o golpe fracassou ou suas verdadeiras promessas são
outras?
Dilma Rousseff: Eu
acho que eles subestimaram a crise econômica e a crise política que eles mesmo
geraram. Quando esteve no Brasil, no início de 2015, Stiglitz disse que a crise
econômica estava precificada. O que não estava precificado é que se acoplasse a
ela uma crise política de proporções gigantescas. Eles defenderam a tese de que
a crise econômica era causada por uma falta de confiança que, por sua vez,
decorria da crise fiscal. Ou seja, o governo tinha sido muito pródigo nas
políticas sociais e havia gasto muito com subsídio ao investimento, gerando uma
crise fiscal. Essa crise fiscal teria produzido uma crise de confiança.
Enquanto essa não fosse resolvida, nada aconteceria. E a receita para resolver
a crise fiscal seria cortar gastos. Um impostinho não pode? Não, de jeito
nenhum. Um pato amarelo foi colocado na avenida Paulista dizendo: ‘não
pagaremos o pato’. Leia-se: não venham com impostos para nós porque não
pagaremos. Não venham com CPMF, juro sobre capital próprio modificado ou
dividendos, que não pagaremos.
O problema da subestimação da crise é achar que se sai dessa situação com corte de gastos. A austeridade da Europa já provou que não sai. Os Estados Unidos, pragmaticamente, não fazem isso desse jeito. Hoje, há toda uma escola de economistas, inclusive dentro do Fundo Monetário Internacional, que questionam esse caminho
A
doutrina do corte de gastos é entronizada como a solução para todos os
problemas. É óbvio que sempre é possível cortar algum gasto. O que não é óbvio
é sustentar que cortar gastos resolve o problema. Quando há uma crise econômica
ocorre uma queda da arrecadação. A arrecadação cai mais que as despesas e
deprime a demanda, o que, por sua vez, deprime o crescimento, aumentando o
desemprego e por aí vai. Então, você pode cortar gastos, mas têm de aumentar a
receita. A hora de aumentar receita é diante da crise. O pato da avenida
Paulista mostra que há sempre um conflito distributivo diante de uma crise.
Quando se está numa fase de expansão, sobra dinheiro para todo mundo. Quando
começa algum problema é preciso distribuir os cortes.
O problema da subestimação da crise é achar que se sai dessa
situação com corte de gastos. A austeridade da Europa já provou que não sai. Os
Estados Unidos, pragmaticamente, não fazem isso desse jeito. Hoje, há toda uma
escola de economistas, inclusive dentro do Fundo Monetário Internacional, que
questionam esse caminho. Agora, essa questão dos impostos é altamente
ideologizada. Essa é uma discussão interditada. Os próprios setores
progressistas do nosso país têm dificuldade de discutir imposto. Mas não existe
forma de financiar um Estado a não ser por imposto ou por endividamento. A face
mais explícita no golpe é a Fiesp dizendo “não pagamos o pato”. E, entre nós, o
silêncio.
No mundo em que o neoliberalismo é dominante há algumas verdades
que são sagradas. A primeira verdade sagrada é que é preciso reduzir o tamanho
do Estado. A segunda diz que é preciso privatizar porque o Estado é inepto em
certas atividades. Outra defende a redução de direitos sociais, pois eles
criariam uma distorção, retirando estímulo para as pessoas competirem. A teoria
dos tucanos e do pessoal do PFL sobre o “bolsa esmola” é derivada daí. Agora, o
eixo central dessa teoria é a desregulação. O que é a desregulação? Não se meta
com o capital financeiro e não tribute. Crie paraísos fiscais, para onde seja
possível fugir evitando a tributação. Quando olhamos o comportamento da
tributação no mundo, constatamos o seguinte: em toda parte, diminui a
tributação sobre ganhos de capital e aumenta a tributação sobre as famílias,
trabalhadores, classe média, tudo o que não é ganho de capital.
O fato de eles subestimarem a
origem da crise cria um impasse. Nós pegamos uma queda das commodities, uma
redução do crescimento da China, uma grave crise hídrica e os Estados Unidos
saindo do quantitative easing, política
baseada em juros baixos e liberação de muito dinheiro para rolar a dívida.
Hoje, no Brasil, eles ficam muito felizes quando o dólar está baixo e o real
alto. Esperam que essa relação fique abaixo de 3, ou seja, três reais para um
dólar. Somos o único país que comemora isso. Trump criticou a Angela Merkel
dizendo que o euro é uma manipulação da Alemanha para ter um marco
desvalorizado e poder, assim, aumentar a sua capacidade de competição. Deixando
a Alemanha entregue a si mesma, a relação dólar-euro teria o primeiro mais
desvalorizado e o segundo mais valorizado. Com isso, os nossos produtos, disse
Trump, seriam mais competitivos.
No
Brasil, nós comemoramos o oposto. Comemoramos um dólar a menos de três reais, o
que inviabiliza a indústria brasileira. A recuperação americana, mesmo com toda
a sua desigualdade, se dá porque eles enchem de dinheiro o setor financeiro,
desvalorizam o dólar e desandam a exportar. Aqui, o reino da financeirização é
total. Percebi isso em toda profundidade no governo. Uma coisa me intrigava:
porque toda vez que o juro baixava (em 2012, essa baixa chegou a 2,5%), era
como se todo o segmento empresarial virasse de costas para o governo.
Sul21: Há quem diga que ali começou o
processo do golpe…
Dilma Rousseff: Eu
acho. Acho que uma parte começou ali. O que caracteriza o neoliberalismo hoje
não é o fato de que eles tenham elaborado o Consenso de Washington, mas sim a
preponderância do setor financeiro sobre o setor produtivo. De certa forma,
todos viraram bancos. E quando todos viram bancos, é bom lembrar que, uma parte
que não é banco propriamente dito, não está regulada. Uma parte expressiva dos
ganhos das empresas passa a decorrer da atividade financeira e não da atividade
produtiva. Os Estados Unidos são o que há de mais desenvolvido do ponto de
vista do sistema capitalista. Lá, do total do movimento financeiro, 15% vai
para o setor produtivo e 85% é compra e recompra de ações, empréstimos e todos
os processos de transformar bens em títulos.
Neste contexto, o que explica o aumento brutal da desigualdade
nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos? A própria eleição de Trump
está relacionada a esse aumento da desigualdade. Esse aumento começou na década
de 80, pós-Thatcher e pós-Reagan. O que aconteceu neste período foi a
desregulação de todo o setor financeiro. O processo de internacionalização é
eminentemente financeiro, tanto para o bem como para o mal. O sistema bancário
foi internacionalizado, mas as redes de paraísos fiscais também foram. Tivemos
a partir daí um processo gravíssimo de concentração de riqueza. Esse processo
explica o Trump e o Brexit (na Inglaterra).
No caso do Trump, não é só o homem branco sem formação
universitária que está ganhando o que ganhava há 60 anos. Há uma estagnação de
salário, uma dominação da atividade de serviços sobre a indústria e uma
ampliação da financeirização em todas as áreas. A tesouraria das empresas passa
a se interessar cada vez mais por valorização financeira. No caso do Brasil,
agregue-se a isso o fato de que são sócios do giro da dívida, que permite
grandes ganhos, principalmente se você tem acesso aos mercados internacionais.
Se você toma 1% lá fora e aplica 7% aqui, você ganha 6% sem fazer nada. Essa
dominação financeira é casada com o aumento da desigualdade. O nosso negócio
não era o aumento da desigualdade, mas sim sua diminuição. É importante que se
diga isso porque toda a América Latina está sendo enquadrada. Quando
enquadraram o Brasil e a Argentina, enquadraram todo o sul do continente.
O
aumento da desigualdade nos países desenvolvidos é fundamental para entender a
dinâmica desse processo. Por que deu Trump se o Obama era tão simpático? O que
explica o Brexit? Não está claro para ninguém que a raiz da desigualdade é a
financeirização. O que dizem para o trabalhador branco americano? Esse bando de
latinos está roubando o emprego de vocês. É preciso construir um muro na
fronteira com o México. Mas dizem uma segunda coisa interessantíssima sobre o
livre comércio. Os acordos como a ALCA, o Transpacífico e o Transatlântico
também são responsáveis pelo desemprego, pois levam as empresas americanas para
outros países. Ninguém toca no assunto “onde estão os grandes ganhos?”.
Querendo ou não, a política de valorização do salário mínimo levou a um crescimento real de 75% do mínimo. Eles diziam que esse era um dos grandes componentes da inflação. Nós não privatizamos a Petrobras e também não privatizamos três grandes bancos: o Banco do Brasil (que concorre com os grandes bancos privados), a Caixa (único banco imobiliário do país) e o BNDES (único banco de financiamento de longo prazo). Além disso, não retiramos direitos sociais, muito pelo contrário. Foi por isso que decidiram nos enquadrar de novo, como fizeram também com a Argentina
Há ainda uma outra explicação importante. Quando o governo não
atende as demandas da sociedade a política se torna irrelevante. Junto com isso
ocorre um processo de despolitização. A política é substituída pela seguinte
orientação: “vamos achar os culpados”. Quando mais concreto for o culpado mais
fácil é. No período entre guerras foi assim. O surgimento do nazismo e do
fascismo decorre dessa ausência de resposta do Estado. O vazio de propostas é
preenchido por coisas do tipo “a culpa é dos imigrantes”. Pensar que a culpa
pelo aumento da desigualdade nos Estados Unidos é dos latinos é algo ridículo.
Estimula-se a briga dos pobres contra os pobres e não se fala nada sobre onde
está concentrada a monstruosa riqueza de 16 trilhões de dólares anuais.
Aqui, nós temos um processo de enquadramento do Brasil. Com a
eleição de Lula em 2003, nós interrompemos a implementação do neoliberalismo.
Não interrompemos tudo, mas bloqueamos uma parte expressiva. Não conseguiram
executar, por exemplo, uma pauta de desconstituição dos trabalhadores. Querendo
ou não, a política de valorização do salário mínimo levou a um crescimento real
de 75% do mínimo. Eles diziam que esse era um dos grandes componentes da
inflação. Nós não privatizamos a Petrobras e também não privatizamos três
grandes bancos: o Banco do Brasil (que concorre com os grandes bancos
privados), a Caixa (único banco imobiliário do país) e o BNDES (único banco de
financiamento de longo prazo). Além disso, não retiramos direitos sociais,
muito pelo contrário. Foi por isso que decidiram nos enquadrar de novo, como
fizeram também com a Argentina.
No caso do Brasil, há um interesse também de nos enquadrar
geopoliticamente. Muita gente achou inadmissível a postural multilateral que
adotamos e que acabou sendo responsável pelo surgimento dos BRICS, um grupo
nada trivial que reuniu China, Rússia, Índia, África do Sul e Brasil. Um dos
principais pontos da política externa do governo Obama, é bom lembrar, foi a
contenção da China. Segue sendo, aliás. Quando decidimos fazer um banco dos
BRICS…
Sul21: Aí já foi abusar da sorte…
Dilma Rousseff: É. Foi
um abuso. Tem uma coisa que é muito pouco comentada. Nós criamos uma coisa
chamada “Acordo Contingente de Reservas”. Você sabe o que é isso?
Sul21: Não.
Dilma Rousseff: É um
FMI. Um acordo contingente de reservas é um fundo monetário dos BRICS, um fundo
de 100 bilhões de dólares, ao qual os países podem recorrer em caso de crise
cambial. Criamos, portanto, um banco de investimentos e um fundo contingente de
reservas. Acho que isso era o que mais incomodava, além de toda a política
dentro do G-20, de não termos votado a favor da invasão do Iraque e essa coisa
toda. Então, acho que essas duas questões estavam na pauta: enquadramento
econômico e geopolítico.
O principal mecanismo do estado de exceção é construir guetos antidemocráticos. Esses guetos não são territoriais. Podem ser tendências. (...) Quando se entra em um processo de ruptura institucional, como é o caso do impeachment, por aí se abre o caminho principal para o estado de exceção. Cria-se entre os poderes um mundo sem lei. Se é possível acertar o Executivo, sem crime de responsabilidade, que é o poder representativo do Estado, tudo é permitido.
Sul21: A senhora disse que os
articuladores do golpe subestimaram a crise política. Em que consiste
exatamente essa subestimação?
Dilma Rousseff: Além
dessa relação entre financeirização e aumento da desigualdade, há outro
elemento importante. Uma sociedade com aumento abusivo de desigualdade acaba
caminhando para ter medidas de exceção. Nós ganhamos quatro eleições. Acho que
eles tinham perdido completamente a esperança de ganhar uma eleição dentro do
método democrático e acabaram aplicando aquilo que o (Milton) Friedman disse
para Pinochet, fazendo com que o politicamente impensável torne-se
politicamente inevitável. Isso acabou acontecendo por meio de uma série de
medidas. Um exemplo disso foi a atitude do Supremo em relação à nomeação de
Lula como ministro. O STF impediu que o Lula assumisse a condição de chefe da
Casa Civil e, agora, permitiu que Moreira Franco virasse ministro. Nos dois
casos, o Supremo não poderia ter interferido. Ele só interferiu no segundo por
causa do primeiro, adotando critérios diferentes nos dois casos.
Quando você não respeita a
isonomia, o arbítrio passa a ser a regra e o estado de exceção vai se
infiltrando progressivamente na democracia. O principal mecanismo do estado de
exceção é construir guetos antidemocráticos. Esses guetos não são territoriais.
Podem ser tendências. Um exemplo disso é quando o Tribunal Regional Federal da 4a região
diz que é possível tomar medidas excepcionais quando se trata de um caso
excepcional como a Lava Jato. Ou seja, pode até suspender a Constituição. Outro
é aquilo que o procurador Dallagnol não teve o menor pudor de dizer sobre Lula:
“não tenho provas, mas tenho convicção”.
Quando se entra em um processo de ruptura institucional, como é
o caso do impeachment, por aí se abre o caminho principal para o estado de
exceção. Cria-se entre os poderes um mundo sem lei. Se é possível acertar o
Executivo, sem crime de responsabilidade, que é o poder representativo do
Estado, tudo é permitido.
Sul21: Como a Operação Lava Jato se
insere neste processo, na sua opinião?
Dilma Rousseff: O
Brasil tem uma tradição de usar o tema do combate à corrupção contra os setores
progressistas. Isso vem desde Getúlio Vargas. Em 1964, o golpe foi dado em
torno de duas questões: subversão e corrupção. As acusações de corrupção foram
lançadas também contra Jango e Juscelino. Acredito que há um componente
ideológico fortíssimo aí. O que aconteceu na Lava Jato tem aspectos bastante
graves. O mais grave deles, na minha opinião, é a não preservação, pelo Estado
brasileiro, das suas empresas. Você pode prender executivos, mas preserva a
empresa. Não é o que estamos fazendo no Brasil. Quando é que a Alemanha fará
isso contra a Siemens? Quando é que os Estados Unidos farão isso contra seus
bancos? Nunca.
Outra coisa que me parece grave é a utilização
político-ideológica de vazamentos seletivos. Esse processo de politização dos
agentes judiciários é muito sério. É inadmissível que um juiz fale fora dos
autos. Em qualquer lugar do mundo democrático, se um juiz fala fora dos autos,
anula-se o processo. Aqui no Brasil, um juiz pode fazer isso que não acontece
nada. Nós temos um problema sério para resolver aí. Nós temos um conflito de
poderes. O estado de exceção significa o uso do Judiciário de forma política
escrachada para fazer julgamentos políticos. Isso é o que mais caracteriza o
estado de exceção que pretende transformar algumas pessoas em indivíduos nus,
destituídos de qualquer pele de cidadania. Para mim, o exemplo maior de homem
nu está nos prisioneiros de Guantánamo. Aquele povo ali é absolutamente nu. Não
tem direito a nada. Não são cidadãos, não são prisioneiros de guerra, não são
nada.
No Brasil, creio que tentaram fazer isso com o que chamaram de
“lulopetismo”. O lulopetismo teve essa característica de ser transformado em um
inimigo que deveria ser destruído. Está ficando difícil fazer isso por essa
exigência de “estancar a sangria”. O estancamento da sangria, cabe lembrar, foi
discutido antes do impeachment. Ninguém pode alegar que desconhecia isso. Está
lá gravado, um senador do PMDB gravando outro senador. O que eles não contaram?
O resto da gravação. Esse resto da gravação é absolutamente elucidativo, pois
denuncia quem são os golpistas. Há uma aliança entre PMDB e PSDB, a qual se
junta o pato da FIESP e a mídia.
Sul21: Qual é, na sua avaliação, o
peso e o papel da grande mídia comercial em todo esse processo?
Dilma Rousseff: Há, na
minha opinião, um processo seríssimo envolvendo a mídia. Creio que o Brasil tem
dois grandes problemas estruturais: precisa fazer uma Reforma Política e
promover uma desconcentração econômica da mídia. Não se trata de democratização
da mídia. Vamos chamar as coisas pelo nome. Só poderemos falar em
democratização em um quadro onde não haja tamanha concentração econômica. Não
quero controle de conteúdo. Quero que o Globo continue falando o que pensa, mas
sem todo o poder econômico concentrado nele. Uma das coisas que o Eduardo Cunha
negociou para ser presidente da Câmara foi que ele não deixaria andar qualquer
projeto relacionado à desconcentração econômica da mídia. Tanto é que, um mês e
meio antes de sua eleição para a presidência da Câmara, os jornais pararam de
falar mal dele.
Sempre é possível ter uma transição por cima, mas acho que as condições para termos uma transição desse tipo no Brasil inexistem atualmente. E não é tanto por causa da esquerda, mas sim pelo nível de radicalização da direita no país. Não vamos nos iludir. O leão não é manso. A única transição que está ao nosso alcance é uma transição por baixo que pode lavar a alma desse país em 2018, seja quem for que ganhe.
Sul21: A senhora viveu dois golpes, em
épocas distintas, com características distintas. O cientista político Wanderley
Guilherme dos Santos disse que o golpe de 2016 tem um caráter mais
anti-nacional que o de 1964. Você concorda com essa avaliação e acredita que
corremos o risco de um processo maior de repressão e fechamento político,
considerando recentes declarações de Eliseu Padilha e do próprio Michel Temer?
Dilma Rousseff: Eu
concordo que é mais anti-nacional. Também acho isso. Por outro lado, acho
estranho o Exército aceitar um papel de repressão. Eles têm uma atribuição de
ser uma força de dissuasão e não de repressão. E não gostam disso. Não querem
que o Exército vá para a rua brigar com policiais, por exemplo. Só se mudaram muito
de maio de 2016 para hoje. Um exército não pode se dar ao luxo de reprimir a
sua própria população. Isso é muito complicado e não significa garantia da lei
e da ordem. O exército não é um órgão de repressão de movimentos e grandes
lutas urbanas. E não pode se tornar isso. Não acredito que os oficiais que
estão hoje na direção do Exército concordem com isso.
Sul21: Há alguma resistência visível,
dentro das forças armadas, ao desmonte de projetos que vinham sendo tratados
como estratégicos, como o da construção do submarino nuclear, por exemplo?
Dilma Rousseff: Para a
Marinha, é gravíssimo. Há três grandes projetos envolvendo cada uma das forças.
Para a Aeronáutica era a construção do caça por meio de uma parceria de
incorporação de tecnologia com a Suécia. Para a Marinha, é todo o programa do
submarino nuclear. Esse processo avançou muito. Uma parte da engenharia estava
lá na França e outra parte estava aqui construindo um submarino não nuclear. A
interrupção desse projeto é gravíssima. É algo que, por questões de segurança
nacional, não poderia ser interrompido. Para o Exército, havia dois grandes
projetos, um sobre a guerra cibernética e outro relacionado ao parque
industrial de armas medias e pesadas, alem da proteção de espaços estratégicos
como linhas de transmissão complexas que, se caírem, fazem cair um pedaço do
Brasil. Esses projetos estão baseados em uma visão dupla com a qual
trabalhamos, de construção soberana de uma indústria militar e de garantia da
segurança nacional. Há um programa que foi construído a partir dessa visão.
Sul21: Considerando todo esse cenário,
quais são, na sua opinião, as principais tarefas da esquerda e das forças
progressistas do país neste momento?
Dilma Rousseff: A
questão democrática é fundamental para nós. Sempre ganhamos quando a democracia
se aprofundou e sempre perdemos quando ela foi restringida. O fato de termos um
estudo de caso para o avanço do estado de exceção é muito elucidativo. Nós
vamos ter um encontro direto com a democracia em 2018. A democracia é vivida todo
dia, toda hora e todo minuto. Mas, no Brasil, a gente tende a viver o nacional
e o popular em um momento único que é o momento da eleição. O que está em jogo
hoje é o que vai ser a eleição de 2018. Essa será a pauta a partir da metade do
ano. Acho que o Lula, nesta história, cumprirá um papel muito importante,
concorrendo ou não. Será muito ruim para o país se ele não puder concorrer. O
Brasil ficará desmoralizado. Ele pode perder a eleição. Não há desmoralização
nenhuma nisso. O que não pode acontecer é ele ser impedido de concorrer.
Acho que eles vão vir com tudo. O golpe ainda não acabou. Eu
fico com muito medo dessa segunda fase. Analogia nunca é um elemento muito
confiável de avaliação, mas a segunda etapa do golpe pode ser muito mais
radicalizada e propensa à repressão. Nossa missão é garantir o maior espaço
democrático possível, denunciar todas as tentativas de restrição das liberdades
democráticas e tentar garantir em 2018 um processo que seja construído por
baixo. No Brasil, há uma tendência a acordos por cima. Foi assim que se passou
do Império para a República. Um dos motivos pelos quais o Bolsonaro vai ao
Congresso e defende o Ustra e a tortura é porque fizemos uma transição por cima
para a democracia. Uma transição por cima permite que torturador seja
anistiado, sendo que a tortura é um crime impescritível em qualquer lugar do
mundo.
Sempre é possível ter uma transição por cima, mas acho que as
condições para termos uma transição desse tipo no Brasil inexistem atualmente.
E não é tanto por causa da esquerda, mas sim pelo nível de radicalização da
direita no país. Não vamos nos iludir. O leão não é manso. A única transição
que está ao nosso alcance é uma transição por baixo que pode lavar a alma desse
país em 2018, seja quem for que ganhe. O processo democrático tem o poder e a
faculdade de propor um encerramento, se for uma eleição que não implique um
golpe, que seria tirar o Lula. Não é uma questão minha ou sua, não é uma
questão individual. É só aí que podemos nos encontrar todos
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